Cada vez mais pessoas estão sendo atacadas por um mal.
Não é um fenômeno novo. Antes restrito a algumas pessoas e de forma mais transitória, hoje em dia é intensificado por excesso de uso de novas tecnologias, como as redes sociais, desenvolvidas em um espaço de tempo muito curto, que, justamente pela alta velocidade de desenvolvimento, não permitem uma adaptação pessoal mais madura e reflexiva.
Este problema materializa-se nas pessoas em uma fuga consciente da realidade, fazendo-a passar a acreditar, cada vez em maior escala, em grandes teorias da conspiração baseadas em frágeis narrativas argumentativas.
Esta fuga da realidade já tem até mesmo um nome, chama-se dissonância cognitiva. O termo foi criado pelo psicólogo social americano Leon Festinger.
A dissonância cognitiva é o nome dado a esse viés cognitivo que leva as pessoas a procurarem algum tipo de coerência em suas crenças e ideologias, embora a realidade as desminta com fatos.
Assim, segundo Festinger, a existência de dissonância, ou fuga da realidade, é o resultado de um desconforto emocional que ocorre quando fatos ou evidências contrariam as crenças, baseadas simplesmente em fé, religiosa ou não, de uma pessoa ou grupo de pessoas.
Acometidas por este mal, as pessoas entram em um estado de tensão ou impulso semelhante ao da fome, motivando-os a tentar reduzir a dissonância e alcançar a consonância — ou consistência.
Quando a dissonância se apresenta, além de tentar reduzi-la, a pessoa evita ativamente situações e informações que provavelmente aumentariam a dissonância.
Assim, “consomem” cada vez em maior abundância “informações” que vão ao encontro das suas crenças, negando-se peremptoriamente a sequer escutar outras informações em contrário.
Aliado a isto, as redes sociais tendem a fornecer, cada vez mais e de forma intensiva, material que sejam similares ao que é consumido, fechando o indivíduo numa bolha, que alimenta as suas crenças e o isola de informações divergentes.
Um exemplo clássico de dissonância cognitiva
Em 1956 – perto de 70 anos atrás, portanto – Leon Festinger publicou um texto hoje considerado um clássico sobre dissonância cognitiva, de nome “When Prophecy Fails” (Quando As Profecias Falham), junto com outros estudiosos da psicologia social: Henry Riecken e Stanley Schachter.
Neste texto os autores narram um estudo que fizeram sobre a existência verdadeira de uma seita apocalíptica de Chicago, liderada por uma mulher chamada Dorothy Martin, que era uma “visionária” e que afirmava ter recebido mensagens de um grupo de seres superiores de um planeta de fora do sistema solar, chamado “Clarion”.
A suposta mensagem trazia um alerta para a destruição da Terra por uma enchente, exatamente no dia 21 de dezembro de 1954. A tal mensagem dizia ainda que somente os verdadeiros fiéis seriam salvos por discos voadores, à meia-noite do dia do início da inundação.
Muitos crentes, seguidores fiéis da Sra. Dorothy, apostaram todas suas fichas na “profecia” da lider. Abandonaram seus empregos, venderam seus bens doando todo o dinheiro para a seita, abandonaram seus estudos e terminaram relacionamentos com todos os que punham em dúvidas o que acreditavam.
Os seguidores acreditavam piamente que iriam ser resgatados por discos voadores de “Clarion” e salvos do dilúvio.
Chegado o dia aprazado e, como já até faz parte da história, o tal dilúvio não veio. Muito menos os discos voadores. Assim, a Sra. Dorothy teoricamente deveria ter sido desmascarada.
O que fez a “visionária”? Simplesmente afirmou que recebera outra mensagem, que dizia que o mundo havia sido poupado porque esse grupo de escolhidos havia orado e acreditado com muita força, fazendo com que a tragédia tivesse sido afastada. A grande maioria dos fiéis foram tomados de júbilo e se tornaram ainda mais crentes com o suposto prêmio pela confiança deles.
Ou seja, a embusteira dobrou a aposta e o grupo aceitou.
Segundo Festinger, a dor emocional de admitir o erro seria tão elevada para aqueles que tinham alterado de forma tão substancial suas vidas que seria menos oneroso emocionalmente continuar acreditando nos princípios errados daquela seita.
E você, já foi afetado de alguma forma pela dissonância cognitiva?
É impossível negar que é muito difícil evitar o sentimento de desconforto causado pelas evidências que contrariam as nossas crenças. Porém, seguramente o desconforto será maior se nos recusarmos a considerar os fatos.
Por isso, busque sempre tomar suas decisões com base apenas em fatos, e nunca nas suas emoções.
10 comentários em “Fuga consciente da realidade”
Belo tema abordado, Faz paralelo com a situação atualmente vivida não só no Brasil, com “seitas político religiosas” .
Muito bom e atual.
Texto perfeito, parabéns pela autoria.
Muito bem explicado, estamos vivendo uma epidemia de dissonância cognitiva, que está contaminando qualquer tipo de pessoa e causando um grande mau na nossa sociedade.
Além de basear-se em fatos, devemos na nossa leitura diária nos abastecer de fontes diversas pra permitir o contraditório. Eu por exemplo de vez em quando coloco na Joven Pan News só pra ouvir o outro lado. Até tentei ler “Tudo que você precisa saber para não ser um idiota” mas realmente não aguentei até o fim.
Muito importante o tema e ainda mais a abordagem pelo autor. Pertinente ao mundo contemporâneo que patina em dissonâncias cognitivas crescentes e amplificadas pelas empresas de tecnologia que dominam as redes sociais. As tecnologias levam a uma vida dupla, podem restringir, mas não determinam tudo. Citando Raymond Williams, autor do clássico “Televisão: tecnologia e forma cultural”, precisamos acreditar na “nossa capacidade de perturbar, interromper e desviar o que seria a lógica fria da história e a unidimensionalidade da tecnologia”. Mas, sem dúvidas, estamos realmente numa encruzilhada humana. Por isso, precisamos ocupar os espaços, como faz esse belo artigo. Vamos jogar luzes de novo para as mentes humanas.
Daqui a 500 anos alguns estudiosos vão se debruçar com a devida atenção ao fenômemo “rede social” e finalmente dar o devido peso ao que estamos vivendo.
Podemos fazer uma comparação com a aparição da escrita por Gutemberg, com a diferença que a “escrita” era restrita inicialmente a um grupo pequeno e dava bastante trabalho “publicar” algo.
Hoje os celulares custam muito pouco, são vendidos aos montes e “publicar” passou a ser um vício.
Associe-se a isso o fato de que diferente da “escrita” tradicional destruir a “escrita” numa rede social é muito menos trabalhoso que nos tempos onde apenas livros e papeis continham a informação.
Sem falar no alcance que uma “publicação” tem hoje.
O ser humano tem a necessidade de ser “acolhido”, de fazer parte de um grupo, de um bando que aja e pense como ele.
O que temos hoje são mecânismos que usam essas carências ao extremo e de forma dissimulada e muitas vezes mal intencionada.
As vezes me pergunto o que será do mundo quando a geração que aprendeu a ler em livros de papel, que precisava pensar e raciocinar sobre cada informação recebida for se acabando e a geração que apenas recebe e repassa “conteúdo” for a maioria… tenho muito medo….
Fazer o que né?
Hoje em dia o farto material de estudos e a facilidade de conseguir, deveria ser suficiente para podermos evoluir, mas, o problema é que o ser humano, está complexa criação que já veio equipado com todas as ferramentas necessárias para seguir sua evolução, contínua aguardando o Príncipe encantado que chegará em um Branco alazão alado e acabará completamente com todos os problemas do mundo. Certamente também não aceitará de bom grado se não for exatamente como ele imaginava.
A deficiência cognitiva por vezes é uma “muleta” para os preconceitos enraizados.
“A verdade muitas vezes incomoda. Não incomoda, no entanto, à aqueles que não desejam ignorá-la.”
A deficiência cognitiva vem “esconder” a verdade, pois a verdade incomoda os preconceitos.
“As palavras permanecem sem sentido até que se transformem em hábitos.”
A constância das redes sociais e das fake news gera os hábitos.
“É mais fácil pregar princípios do que viver de acordo com eles”.
Os outros estão sempre errados. As leis e regras são para os outros.
“Nada melhor para ser feliz que trocar as preocupações por ocupações.”
A dissonância cognitiva aqui não é de uma pessoa ou de duas pessoas, mas de quase metade de nossa sociedade. hj existe uma onda mundial de dissonância cognitiva de Extrema Direita, em alguns países mais e em outros menos. Sim, nós e a nossa própria Civilização hj nos encontramos numa encruzilhada. Gritantes assimetrias sociais, econômicas e políticas. A cultura da guerra contra a cultura da paz. A guerra na Ucrânia é uma grande cortina de fumaça em que os verdadeiros interesses geopolíticos não são colocados as claras no tabuleiro. Uma hecatombe nuclear sem precendentes não se é descartado nesse xadrez. E por aqui temos a transmutação do fanatismo da Pátria de Chuteiras para o fanatismo político ideológico de Extrema Direita e diga-se de passagem que é o Intregalismo ressuscitado e revisitado. Plínio Salgado morreu em 1975, mas o lema “Deus, pátria e família” está mais vivo do que nunca. E só para relembrar: Vinicius de Moraes e Câmara Cascudo eram simpatizantes do Integralismo. A psiquiatria, a psicologia e a sociologia talvez possam explicar essa onda e esse fenômeno que estamos vivendo aqui e no Mundo. Talvez, as verdadeiras origens nessa dissonância estejam na velocidade que retiramos e exploramos os recursos energéticos e das matérias primas da Natureza. Ação e reação: lei de causa e efeito. As mudanças climáticas estão aí para todos nós, não terraplanistas. A antropologia, a paleontologia, a meteorologia, a geologia e a ecologia poderão tb nos ajudar a achar a resposta. Será que teremos tempo através da Política e como atores históricos para nos reorientarmos e recuperarmos a sabedoria de nossa espécie, tanto aqui como em alhures? Quanto mais luz e reflexão nesse momento, melhor para superarmos e fugirmos dessa tenebrosa e catastrófica Globalização da Dissonância Cognitiva que já nos assombra na linha do horizonte. O saudoso geógrafo Milton Santos prognosticava que a salvação de nossa Civilização estava na baixa tecnologia e não na decantada alta tecnologia.